terça-feira, 30 de outubro de 2012

O drama da escolha




















É o dia do quinto aniversário da Nanda, e ela ganha um belo dinheiro de presente dos avós. 'É para você comprar o que quiser!', diz a avó entusiasmada. No dia seguinte, a família vai à loja, uma daquelas imensas, cheia de brinquedos, e os pais dizem para a menina: 'Pode escolher!'. Ela fica parada, com os olhos fixos, a mão na boca. Os pais estimulam: 'Vai, Nanda, pode ser o que você quiser!' A pequena continua imóvel, os minutos passam e ela começa a dar sinais de incômodo, até cair em pranto. O que teria acontecido? Supunha-se que seria um momento maravilhoso para a menina...
O dinheiro tem, para a criança pequena, um valor mágico. É aquilo que possibilita tudo, que brota de algum lugar misterioso e vago. Aprender a lidar com esse valor poderoso demanda operações mentais complexas, sendo a mais óbvia,  poder fazer  cálculos. Mas não foi esse o problema que a pequena Nanda teve na loja. Diante da situação em que ela podia 'qualquer coisa', não conseguiu fazer uma escolha. O presente assumiu feições gigantescas e o sentimento não foi de alegria...
Para escolher, precisamos definir `um´ desejo e decidir que esse é maior do que outros. Essa definição exige conhecimento de si e capacidade de abrir mão, de ficar com `um´e perder os demais, colocando um limite nas alternativas. 
Diante de frases como 'você pode escolher o que quiser' desperta-se a expectativa de uma satisfação plena;  parece que nada vai conter essa inundação de possibilidades onde o indivíduo se vê diluído, sem contorno. Contrariamente ao que imaginamos, muita liberdade  traz angustia e não prazer. Esse é um dos  efeitos da tão falada `falta de limites´.
O adulto ajuda a criança quando delimita para ela o campo de escolha. Teria sido melhor para a Nanda que os pais tivessem lhe apresentado três ou quatro opções. Mesmo que ela as recusasse, estas lhe dariam um chão sobre o qual pisar,  um caminho para encontrar o seu desejo.

Marcia Arantes e Helena Grinover



terça-feira, 23 de outubro de 2012

Nem parece meu filho...

 



Renato tem dez anos e frequentemente passa alguns dias em casa de amigos ou parentes. Invariavelmente seus pais, ao receberem o filho de volta, ouvem apreciações que em nada combinam com o que eles veem na convivência com o menino. 'Ele é tão meigo, extrovertido, faz  piadas...' comentam. Parece que estão lhes falando de outra criança.
É bastante comum esse desencontro entre o que se revela para os pais e o que aparece em outros lugares, com pessoas diferentes. Muitas vezes essa discrepância causa certo desconforto: ´porque lá em casa não é assim?'
Cada individuo, ao se encontrar com um novo semelhante, vê nele aspectos com os quais constrói uma imagem. A pessoa aprecia, desgosta, aprova, ama, detesta, em função do ângulo em que olha. Ou seja, toda vez que a criança se relaciona com pessoas diferentes, ela recebe o retorno de uma imagem de si mesma que depende  do recorte que esses novos olhos privilegiam nela, do novo 'ponto de vista'.
O fenômeno do filho que parece ser 'outro' se explica pela imagem diferente que os 'outros' podem oferecer a ele e pelos efeitos que isso tem. Aquilo que é visto como parte de sua nova imagem, tende a ser também apropriado pela criança que deseja ampliar e mudar o conceito que tem de si, ou seja, ela quer ser olhada de outra forma. 
Os pequenos são mais susceptíveis a essas novas interações e assim incorporam outras faces a sua individualidade. Daí a riqueza e as surpresas que esses afastamentos temporários da família propiciam ao longo do desenvolvimento. 
Aos pais podemos dizer que essa é a única via pela qual seus filhos podem formar a própria personalidade, ou seja, se espelhando primordialmente em quem cuidou deles quando pequeninos, para depois poderem absorver outras influências. Renato, ao se apresentar diferentemente quando está longe do olhar dos pais,  ilustra a liberdade que tem de constituir alternativas para sua maneira de ser, sem perder o que recebeu deles para se estruturar.

Helena Grinover e Marcia Arantes










terça-feira, 16 de outubro de 2012

As profecias se realizam...





















'Passei a vida acreditando que não tinha habilidade com as mãos. Foi o que ouvi por toda a infância. Estou absolutamente surpresa com o que fiz!!' Esse é o comentário entusiasmado de uma mulher de 45 anos, ao final de uma boa aula de desenho...
Nossa experiência clínica mostra crianças com baixo rendimento escolar, adultos com sentimentos de inferioridade, inibições, sofrimentos na vida amorosa e profissional, ligados a depoimentos como esse. As pessoas ficam marcadas por expectativas, pelas frases repetidas, pela maneira como são vistas por pais e educadores.
A respeito desse assunto, chamou a nossa atenção um artigo publicado pela Folha de São Paulo em 09 /10, no caderno 'equilíbrio', com título bastante sugestivo: "A crença que vira sentença". A jornalista relata  o experimento levado a cabo em 1964 na Califórnia, retomado em 2012, onde os pesquisadores aplicaram um suposto 'teste de Harvard' nos alunos do ensino fundamental de uma escola. Após a avaliação forneceram aos professores uma  falsa lista composta por nomes sorteados entre os que haviam realizado o teste. Disseram aos mestres que esses eram seus pupilos que tiveram os melhores resultados, os que tinham maior nível de inteligencia.  Um ano depois, repetiram o teste e observaram que os indivíduos que faziam parte da falsa lista conseguiram um desempenho 4% acima dos demais. 
Os pesquisadores concluíram que a crença do professor faz diferença no aproveitamento das crianças. Ele trata de uma maneira o aluno que considera 'inteligente' e de outra, bem diferente, o que considera menos 'inteligente', gerando assim efeitos  significativos no desempenho de ambos. Aqueles que o mestre acredita, antes mesmo de conhecê-los, que devem ser os 'melhores da classe', rendem de fato mais do que aqueles cuja expectativa é de que sejam os 'piores da sala'.
Esses resultados da pesquisa confirmam o que observamos na clínica e na vida.
Rever essas crenças fixas, ou tomar consciência delas para mudar as atitudes e as palavras, pode ajudar   pais, professores e alunos.

Marcia Arantes e Helena Grinover



terça-feira, 9 de outubro de 2012

É meu, ou é nosso?


















Beatriz está fazendo nove anos e a família preparou  um lanche para os amigos onde a diversão é cada um montar o próprio sanduíche. Sobre a mesa há várias travessas com os ingredientes e talheres para que as crianças se sirvam. Surpreendentemente, muitas delas avançam, devorando  com as mãos os recheios de sua preferência, sem a mínima preocupação em montar os lanches ou utilizar os apetrechos adequados.
Nesta idade, uma criança já deveria ter aprendido que os talheres são para proteger o alimento que todos vão ingerir e que a divisão dos quitutes numa festa não privilegia alguns convidados...
Adultos, frequentemente, se  questionam diante de comportamentos individualistas dos jovens. Os mais velhos, horrorizados, dizem: 'no meu tempo não era assim...' O que se passa?
Na sociedade contemporânea, a vida dos cidadãos é cada vez mais mapeada por trajetórias individuais. A realização pessoal depende em alto grau do que o sujeito conquista por conta própria, com poucas contribuições das organizações e instituições sociais. Esse movimento, acelerado nas últimas décadas, amplia e valoriza o espaço privado em detrimento do coletivo. Estudar, trabalhar, cuidar dos filhos, demanda enormes esforços e recursos individuais ou familiares. Trava-se uma crescente 'luta pela vida' na qual é necessário vencer os que disputam a 'sua' posição e o lugar que cada 'um' conquista precisa ser defendido o tempo todo.
A ação que predomina, dentro do campo social estruturado desta maneira, é mais orientada por uma avidez para conseguir o que se quer, do que por uma disposição para participar e compartilhar.
O efeito disto pode ser observado nas crianças em situações como as do nosso evento de aniversário.
A noção de que o coletivo pertence a todos e de que destruí-lo empobrece também  aquele que o destrói,  parece estar longe da experiência de vida dos mais novos. É um desafio para pais e educadores ajudá-los a adquirir essa consciência. Para isso, vão precisar recuperá-la neles mesmos...

Helena Grinover e Marcia Arantes

vivazpsicologia.blogspot.com.br

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Podemos fazer só por prazer?


















'Acho importante que meu filho faça o que gosta. Por que ficar numa atividade que o incomoda?' 'Vou tirar meu filho do judô, ele tem reclamado bastante do professor'.  'Não sei se deixo minha filha continuar a natação, ela se queixa tanto na hora de levantar e se trocar!

Essas frases nos fazem pensar... Nos dias atuais vivemos uma super valorização do prazer, das satisfações imediatas e a ansiedade dos pais com essas questões se mostra mais evidente. Qualquer sinal de insatisfação nos pequenos é logo notado . 
Quando os adultos se afligem muito rapidamente com essas 'infelicidades', podem impedir conquistas importantes.
Sabemos que os prazeres obtidos de imediato não colaboram para o desenvolvimento da capacidade de modificar a realidade, ou a si mesmo, para conseguir o que é desejado. Receber satisfação como o resultado da simples manifestação da vontade, atende mais às necessidades do bebezinho. Para ele, o mundo deve funcionar primordialmente assim: 'eu quis, aconteceu'.  Mas, ao longo da vida, de acordo com suas possibilidades, a criança precisa ser capaz de conter os anseios e fazer transformações para chegar ao que almeja. A aquisição de conhecimento, habilidades e tenacidade para realização de trabalhos, têm por base a tolerância de suportar certas frustrações. Essa é uma das condições  da perseverança, que conduz a um prazer conquistado e seguro.
Podemos pensar que, mesmo quando o professor não corresponde totalmente às expectativas do aluno, a atividade é difícil e há momentos maçantes, ou que 'dá preguiça' na hora de ir à natação, pode ser promissor evitar decisões rápidas, valorizando demais as queixas.  Cabe aos pais e educadores, juntamente com as crianças, avaliar quando e quanto a falta do prazer imediato deve ser suportada para que elas possam obter prazer das vitórias sobre si mesmas...

Marcia Arantes e Helena Grinover

vivazpsicologia.blogspot.com.br